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MAUS TRATOS NA INFÂNCIA E O SISTEMA LÍMBICO - artigo cientifico

MAUS TRATOS NA INFÂNCIA E O SISTEMA LÍMBICO                                               Carla Helena Gräff ¹                       ...

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

PROCESSOS DE ENSINO NA EDUCAÇÃO DOS DEFICIENTES MENTAIS


PROCESSOS DE ENSINO NA EDUCAÇÃO DOS DEFICIENTES MENTAIS

Fabiany de Cássia Tavares Silva
UFMS — PUC/SP

A discussão sobre o currículo e o ensino na educação dos deficientes mentais está posta
desde o término de minha dissertação em 1996. O estudo que realizei sobre as propostas
curriculares produzidas no período de 70 a 94 para o ensino do deficiente mental,
possibilitou-me levantar alguns pressupostos para estudos futuros, dentre eles destaca-se a
investigação em sala de aula dos procedimentos didáticos especiais1. Este pressuposto fez
nascer a três anos no Campus de Dourados, da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul, uma pesquisa (resultados de projetos de extensão) com professores da rede estadual na
área de deficiência mental.
Esta pesquisa teve por proposta central de estudo os processos de ensino2 de sujeitos
deficientes mentais em espaços “especializados”. Neste estudo, as modalidades de
educação especial — classes especiais e salas de recursos — representaram um locus
privilegiado de investigação.
Analisar os modos como são entendidas a educação destes sujeitos e a estruturação das
práticas educativas cotidianas de uma classe especial e sala de recursos, particularmente
focalizando as atividades de ensino que se dão dentro delas, tem sido um interessante
instrumento de investigação de alguns aspectos ligados aos procedimentos didáticos
especiais.
Trabalhando com um número de 12 (doze) professores3, pelo período de dois anos
seguidos, privilegiando uma concepção histórico-cultural como referência teórica,
construímos os instrumentos de pesquisa a partir de dois tipos de fontes:
1 Neste estudo foram identificados como procedimentos didáticos especiais, os procedimentos fundamentados
nas teorias psicológicas — Piagetiana e Sócio-Histórica.
2 Estou entendendo os processos de ensino como uma porção do currículo e, este determinado pela cultura -
em termos de conteúdos e práticas (de ensino, avaliação, etc.) - que, por ser considerada relevante num dado
momento histórico, é trazida para a escola, isso é, escolarizada (Williams, 1992).
3 Cinco de classes especiais e seis de sala de recursos. Estes professores possuem graduação em Pedagogia,
Letras e História.
2
— os planejamentos de aula produzidos nos cursos de extensão, onde os professores
descreviam quais os objetivos que orientavam as atividades descritas e realizadas pelos
alunos;
— e acompanhamento das ações escolares (observação participante na sala de aula).
Cabe, ainda que rapidamente, identificar o cenário das classes especiais e salas de recursos,
que são definidos tanto pelo ambiente físico em que se inserem, pela estrutura organizativa
que define seus componentes, os papéis assumidos e as relações afetivas e sociais que se
estabelecem entre eles, pelas rotinas, práticas e horários.
As classes especiais são montadas para atender a objetivos educacionais, portanto
organizam seu ambiente de maneira semelhante ao da sala comum, em equipamentos e
atividades exclusivamente pedagógicas. Quanto as salas de recursos a organização do
ambiente é feita de forma a viabilizar a implementação de objetivos em todos os tipos de
atividades, sejam elas lúdicas, pedagógicas ou outras, de acordo com as necessidades dos
sujeitos. Esta organização vai determinar a programação para cada grupo, os
relacionamentos estabelecidos.
Acreditando que o cotidiano está impregnado de conteúdo histórico (Ezpeleta e Rockwell,
1989, p. 22), a partir das práticas evidenciadas e vividas, das ações de reflexões sobre elas
no âmbito dos estudos e da vida cotidiana, pretendeu-se compreender o movimento
pedagógico-social.
Nos limites deste texto, não serão priorizados para análise nem interpretados, o conjunto de
fatores físicos, sociais, ideológicos e simbólicos que identificam os cenários das
modalidades e influenciam o processo de aprendizagem. Por outro lado, entendemos que
esse conjunto constitui um meio, o qual a cada momento e em cada situação captura/
recorta o fluxo de comportamentos do sujeito, tornando-os significativos naquele contexto.
Cada sujeito, ao agir, está também recortando e interpretando de forma pessoal o contexto,
os comportamentos de seus interlocutores, a partir sua própria experiência sócio-cultural.
Esses recortes são fundamentalmente definidos pelo papel, posição ou perspectiva
assumida/atribuída ao sujeito, nas ações e relações que ocorrem nos momentos de ensinoaprendizagem.
A análise deste conjunto de fatores integrarão minha pesquisa de
doutoramento.
3
Para investigar o problema, dirigimos o olhar para as questões teórico-práticas, elaborando
um cronograma com: 20 (vinte) horas para estudos de bibliografia específica para o
processo de alfabetização4 (Cartilhas Didáticas — para discutirmos os tipos de atividades
presentes nos planejamentos construídos —; Ferreiro e Mantoan — para discutirmos o
construtivismo “especial” dito oficial nestas salas, bem como os trabalhos mais próximos
de uma interpretação histórico-cultural do processo de ensino — Góes e Smolka); 40
(quarenta) horas distribuídas em encontros temáticos mensais pelo período de seis
meses, durante dois anos, acrescidas de “entradas” periódicas nas salas de aula.
As crenças, divulgadas pelos professores, de estarem apoiando sua ação didática em fontes
teóricas, na tentativa de dar sentido as práticas, conceitos e trabalho pedagógico realizados,
levou-nos a destacar três grandes temas para nortear as discussões, a saber:
— Concepção de Homem e Sociedade — está concepção sustentaria as discussões sobre a
deficiência mental, suas determinações sociais, sua história, sua produção contextual e
a relação com a produção do conhecimento;
— Concepção de Linguagem — procuramos compreender as bases da interação entre
homens e realidade social, através do uso de signos;
— Procedimentos Didáticos — a dimensão prática das análises anteriores, isto é, aquilo
que identifica cada proposição teórica de ensino.
Sendo assim, buscamos no referencial bibliográfico aquilo que possibilitaria o
conhecimento e a desmistificação dos fundamentos destas práticas que dão forma aos
diferentes processos de ensino.
Através destes temas, identificamos algumas instâncias de produção e transformação do
conhecimento, onde a relação escola e cultura contribuem para a construção de novas
relações entre ensino e currículo.
Com Sacristán (1998), entendemos que esta aproximação — escola e cultura —, é um
desafio didático onde os conteúdos do currículo e das experiências e trocas são criados ao
longo de um prolongado processo de socialização, de imersão e de aprendizagem da cultura
4 A ênfase no processo de alfabetização (circunscrito a leitura e escrita) foi uma indicação do próprio grupo,
uma vez que todas as dificuldades professadas diziam respeito ao aprendizado da língua escrita.
4
da escola. Os modos permanentes de pensar, sentir e atuar são desenvolvidos na sala de
aula e na escola e, também, naturalmente, na vida extra-escolar.
De certa forma, então, as práticas educativas inclusive para os sujeitos deficientes mentais
guardam estreita correspondência com a cultura escolar na qual se organizam, de modo que
ao analisarmos um determinado currículo, podemos inferir não só os conteúdos que,
explícita ou implicitamente, são vistos como importantes naquela cultura, como, também,
de que maneira são priorizados alguns conteúdos em detrimentos de outros, isso é,
podemos inferir que, historicamente, os critérios de escolha que guiaram os professores se
deram pela leitura etiológica da deficiência.
Isso tem pelo menos dois efeitos imediatos sobre as possibilidades de aprendizagem destes
sujeitos. Em primeiro lugar, parece que mais do que nunca o conhecimento está sendo
desigualmente distribuído no ensino especial. Então, como evitar isso? Em segundo lugar, a
distribuição desse conhecimento escolar - e, de resto, a própria escolarização - deixa de ser
entendida como um elemento definidor das possibilidades de socialização/integração destes
nos demais segmentos sociais.
Os processos de ensino: dos professores aos alunos
Os mecanismos de manutenção da hegemonia de uma concepção liberal-burguesa de
deficiência, de sociedade e educação, estão com certeza presentes nas práticas pedagógicas
do universo da educação do deficiente mental.
Uma das hipóteses centrais que utilizamos ao longo da análise que efetuamos é a de que a
incorporação de um discurso de práticas centrado em teorias psicológicas/pedagógicas
alimenta-se na predominância de concepções naturalizantes da deficiência, e não na
ausência de tentativas de ensino por parte dos professores.
A preocupação reiterada do grupo em buscar características no desenvolvimento
psicológico dos sujeitos (oferecidos pelo psicodiagnóstico responsável pelos
encaminhamentos a estas modalidades), para elaborar programas de ensino mais adequados
aos perfis “deficientizados”, desnudou a necessidade de aprofundamento da crítica
fundacional dos procedimentos de ensino, bem como do entendimento de deficiência
mental que apresentavam. Crítica esta que procurava agregar o conhecimento dos ritos e
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regularidades do mundo externo como fonte de novas informações para o conjunto de
conhecimentos já existentes sobre a deficiência e os sujeitos com ela.
Para tanto, introduzimos uma leitura do “entorno social” da deficiência, da escola, da
condição de professor de educação especial que, está impregnado de conceitos, nomes e
etiquetas que atuam como ferramentas reinterpretativas das capacidades de
ensino/aprendizado.
Para esta leitura o conceito necessidades educativas especiais passou a ser o escolhido pelos
professores para direcionar a reconstrução do entendimento da deficiência mental, uma vez
que o viam como redefinidor da relação deficiência—sociedade—escola. A opção por este
conceito trouxe à tona idéias, valores e percepções das deficiências, que em si não
redefiniam aquela relação e, sim, reiteravam uma concepção prescritiva da educação dos
deficientes mentais.
Assim, iniciamos discutindo a importância de se reconhecer o desenvolvimento da
deficiência mental, e não a deficiência/insuficiência em si mesma. Este reconhecimento
está fundamentado na descoberta das reações apresentadas pelos sujeitos em resposta as
suas dificuldades, uma vez que estes não se formam apenas pelos seus “defeitos”.
Dentro desta compreensão não podemos falar na deficiência mental em geral, uma vez que
dentro desta complexa formação se incluem fatores diferenciados. De acordo com a
complexidade de sua estrutura é possível não um, mas muitos tipos qualitativamente
diferentes de insuficiência intelectual e, portanto, devido a esta complexidade do intelecto,
suas estruturas admitem a ampla compensação de diferentes funções.
Para julgar corretamente, então, as possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem do
deficiente mental, é necessário saber que suas relações interfuncionais se formam de
maneira peculiar e diferente. Nesse sentido, a relação com o ambiente é privilegiada, uma
vez que o sujeito interioriza determinadas ações considerando os recursos funcionais que já
construiu (competências motoras, cognitivas, sociais e lingüísticas) como condições para a
realização de seus objetivos.
Como conseqüência das discussões anteriores, retornamos ao conceito de currículo
adaptado que os professores expressaram, como um fazer técnico sobre o processo de
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ensino. Técnico entendido como diferente a partir de uma maior aproximação com as
características diferenciadas das deficiências e não da aprendizagem dos sujeitos.
Estas características eram agrupadas em termos como “lentidão”, “atraso mental”,
“desligado” e muitos outros que, ao interpenetrarem o cotidiano das salas de aulas,
acabavam por determinar as possibilidades de aprendizado e, conseqüentemente, de ensino
daqueles sujeitos.
Diferentemente entendemos que as adaptações curriculares devem permitir o acesso aos
conhecimentos historicamente produzidos e, não, a eliminação de objetivos, conceitos e
conteúdos acadêmicos socialmente necessários.
Em pelo menos um dos níveis de concretização curricular — planejamento de atividades
com o qual estamos trabalhando — a determinação de um certo psicologismo,
marcadamente mecanicista e organicista, resultou na incorporação de um tipo de
preocupação: os “defeitos” de aprendizagem precisam de um trabalho de caráter
reabilitador. Tal caráter recaía sobre a singularização de conteúdos e a massificação dos
considerados passíveis de aprendizagem, com grande predominância das atividades de
leitura e escrita, principalmente, através de jogos.
Esta adaptação do currículo, atividades de reabilitação de conteúdos acadêmicos, nestas
modalidades parece, então, ser decida por regras psicológicas, por certezas psicologizantes
que, determinam certezas pedagógicas sobre as possibilidades de conhecimento, em outras
palavras, as atividades corroboram e transmitem verdades chanceladas pelo reconhecimento
da deficiência (etiologicamente falando), tudo líquido e certo, tudo absoluto, a certeza
absoluta no campo da aprendizagem dos deficientes mentais.
Nesse processo de “conformação”, o discurso pedagógico retira o discurso “psicológico” de
seu contexto original, abstraindo-o de suas relações de produção para inseri-lo no contexto
de comprovação das causas do não aprendizado, regularmente da singularização dos
conteúdos de ensino. Assim, a prática pedagógica, quando não está dando lugar a um
discurso substitutivo da ação, está mantendo a ação ao nível dos paradigmas funcionalistas
e interpretativistas das deficiências.
Isto fica claro na resposta de alguns sobre as possibilidades de aprendizado de seus alunos:
Com certeza é um trabalho difícil e a longo prazo, deve haver persistência. O fator
fundamental seria a “personalidade” até então construída no meio em que vive.
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É muito difícil, pois o indivíduo portador de necessidades especiais vai encontrar
muitas barreiras (...) discriminação (...) muitas vezes dos próprios professores.
Não devemos ver os sujeitos diferentes como uma barreira, mas sim como um desafio
que depende de nós professores para mudar este quadro, devemos vê-lo como uma
pessoa que tem necessidades, direitos e deveres, respeitar seus limites.
A natureza e o conteúdo do discurso instrucional recortar-se de tensões e contradições. É,
naturalmente, uma certeza bastante difícil de ser alcançada por parte dos professores — a
aprendizagem do aluno deficiente mental —, porque o discurso tem-se limitado a
estabelecer um elemento regulativo, a deficiência, sob pena de negar, na prática, um
componente que redimensionaria a ação educativa, o sujeito.
Assim, as narrativas contidas no currículo seriam o instrumento privilegiado para buscar a
compreensão desta “diferença”, pois elas acabam por corporificar,
noções particulares sobre conhecimento, sobre formas de organização da sociedade,
sobre diferentes grupos sociais (...) dizem qual conhecimento é legítimo e qual é
ilegítimo, quais formas de conhecer são válidas e quais não o são, o que é certo e o
que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo
e o que é feio, quais vozes são autorizadas e quais não o são (Silva, 1995, p.195).
Nessa perspectiva, o sujeito e a deficiência são retirados da esfera pedagógica e remetidos
para a esfera da determinação psicológica. Uma conseqüência histórica disso é que o ensino
deixa de ser um elemento fundamentalmente qualitativo para se tornar um elemento
instrumental e técnico.
Para Perrenoud, a prática pedagógica na sala de aula não é a concretização de uma teoria,
nem mesmo de regras de acção ou de receitas (1997, p. 40).
Um dos principais objetivos e efeitos da aplicação do ensino como técnica tem sido um
controle mais rígido do trabalho e da ação docente “especial”, medido, hoje, pela
capacidade de “inclusão”. Inclusão esta que não tem passado pela discussão da qualidade
do aprendizado dos sujeitos.
Têm-se concedido, portanto, menos atenção aos processos de ensino pelos quais a educação
dos deficientes mentais se liga ao processo de reprodução cultural e social. Essa conexão
que parece estar ausente da teorização educacional nessa área, talvez seja conseqüência do
predomínio de uma visão de comportamento individual e interpessoal.
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A prática “tradicional” uma das formas de organização do trabalho pedagógico, mais
utilizada pelos professores de classes especiais, na qual fundamentalmente está em curso a
compreensão do conteúdo que intencionalmente se quer ensinar, fica evidente nas
atividades abaixo descritas:
Ditado de letras, sílabas, palavras isoladas e frase, com o objetivo do sujeito representar
graficamente seu aprendizado em sonorização e grafação; Fazer bingo do alfabeto para
montar palavras usando a vogal A (exemplo: LATA, MATA, BATA, GATA, etc.); Identificação
de palavras em parlenda (escolha de alunos para irem circular a palavra ditada pela
professora).
A centralidade no professor é tanto observada quanto descrita nas atividades, uma vez que
o encaminhamento, as orientações até a realização pelos alunos são determinadas por este.
O professor intitula-se o “estímulo” do aluno, secundarizando o papel das atividades no
alcance do conhecimento.
É fácil reconhecer esse modelo nas teorias comportamentais psicológicas em que se
basearam as técnicas de ortopedia mental (utilizada nos primórdios da educação especial).
Entretanto, não foi observada nenhuma indicação de que as tendências que vão a sentido
contrário (as chamadas construtivistas) tenham conseguido alargar a base das ações que
compreendem o processo de escolarização em classes especiais.
Em suma, existe uma tendência em toda essa prática a se prender a uma definição
exclusivamente biológica e psicológica das possibilidades de aprendizagem do deficiente
mental exigidas pelo processo de ensino, em detrimento de uma compreensão dos
elementos sociais e políticos aí envolvidos.
Dentro desse panorama, o oferecimento aos sujeitos, quando da aprendizagem da escrita,
muito mais presente que as outras áreas, dos tradicionais exercícios repetitivos,
memorizados, mecanizados sem significação imediata para o uso daquela, ignora que
ensinar a escrita impõe necessariamente que esta seja relevante à vida.
Já, o que parece regular e determinar as atividades construtivistas tanto nas classes
especiais quanto nas salas de recursos, é o reconhecimento dos níveis de desenvolvimento
dos sujeitos, dado fornecido pelo diagnóstico, aliado às possibilidades de conceitualização
da escrita — Ferreiro. Esta relação direta entre aprendizagem de escrita e nível de
desenvolvimento é uma criação da educação especial, talvez para corroborar o não ensino,
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pois os sujeitos não estariam suficientemente “amadurecidos” para o uso social da escrita
alfabética.
O construtivismo “especial” na verdade, ao ditar uma outra direção a prática escolar por
estar assentado na Teoria Psicogenética Piagetiana — homogênea nos estudos sobre
deficiência —, nada mais fez do que incorporar o lado psicológico de entendimento das
causas e ocorrências da deficiência às discussões sobre alfabetização.
Esta tentativa de “produzir” construtivismo especial é bastante interessante do ponto de
vista da aprendizagem, na medida em que tende a biologização e à naturalização das
diferenças ao enfatizar a compreensão do processo de construção das estruturas mentais
individuais, ignorando o contexto social e institucional da produção de conhecimento.
A adoção dos níveis de organização do conceito de escrita - psicogênese da língua escrita -
como ponto de partida metodológico - didática, atividades e conteúdos - propicia uma
leitura equivocada do instrumental de possibilidades oferecido para visualização do
processo de aquisição da escrita.
Ferreiro e Teberosky procuram saber “como lêem as crianças que ainda não sabem ler”,
“como escrevem as crianças que ainda não sabem escrever”, ou seja, buscam compreender
que concepções de língua escritas às crianças têm antes de iniciar o processo formal na
escola.
As atividades “ditas” construtivistas, portanto, negam a premissa básica do construtivismo,
qual seja, entender-se como liberação e democratização do processo de aprendizagem. Tal
negativa fica evidente em atividades típicas do cotidiano descrito/observado nas salas de
recursos, tais como:
Jogos com blocos lógicos: é entregue para cada criança, solicitando que manuseiem usando sua
criatividade e relacionando-as com outras do grupo, em seguida pede-se que sejam observadas
formas, cores e, então, classifique-as comparando até mesmo a quantidade descontínua e
registre; Leitura de estórias infantis: a partir da proposição do professor os alunos lêem uma
estória, afim de que organizem outra oralmente e registrem-na.
Faltam a estas atividades a consciência de estarem criando algo novo, pois a partir do que
se observa em situações que estão além de sua capacidade, as crianças se desenvolvem e
aprendem, entretanto o objetivo central destas está no produto e não no processo, no caso a
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escrita. Nesse sentido, têm-se concedido menos atenção, em troca, aos mecanismos
estruturais pelos quais os sujeitos apreendem determinados conhecimentos.
Para se apropriar do sistema de representação escrita, a criança precisa construir respostas
para: o que a escrita representa? Qual a estrutura do modo de representação da escrita?
Como sabemos, em Ferreiro não se apresenta um objetivo voltado para a prática, o que não
significa que não ofereça uma contribuição no movimento de reflexão desta. O fazer
construtivista está relacionado com o fazer cotidiano, com o conhecimento interligado neste
fazer - a ação pedagógica, as opiniões, os valores, as ideologias, o pensar; enfim, com
aquilo que permeia o que o professor faz na sala de aula e o que faz em relação ao
conhecimento.
Esta parece ser a distinção fundamental entre a prática tradicional e a construtivista.
Entretanto, ela configura a aproximação às proposições histórico-culturais, leia-se
Vygotsky, pelo menos para os professores.
Parte da predominância atual da perspectiva histórico-cultural no universo da educação
especial deve-se, precisamente, a um duplo entendimento equivocado, construído na busca
de uma teoria de ensino. De um lado, ela aparece como uma teoria educacional social,
satisfazendo, portanto aqueles critérios historicamente discutidos para a melhoria da
educação especial, quais sejam, considerar o sujeito deficiente como um ser social e, assim,
determinado por suas relações com os sujeitos normais e com sua deficiência. De outro, a
perspectiva histórico-cultural forneceria uma base relativamente inovadora para a prática
pedagógica, as interações, os trabalhos grupais.
Se compararmos isto com, as conseqüências nefastas, por exemplo, da passagem, imposta
aos professores como sinônimo de progresso, das práticas tradicionais para as práticas
construtivistas, poderemos aprofundar o debate sobre o que pode representar uma
incorporação da perspectiva histórico-cultural apressada.
Obviamente, a apresentação desta como depositária da capacidade de reorientação dos
marcos das práticas pedagógicas — o que nenhum professor que se considere progressista
quer desconsiderar —, têm outros interesses não manifestos. Ao se difundir a idéia de que
deficientes educados nesta perspectiva tenderiam a assegurar um processo de inclusão
11
social e escolar, mais concreto, a promessa de um processo de ensino mais humanitário está
colocado.
Trata-se, com certeza, da combinação de desenvolvimento teórico com um sentimento de
urgência política — retratação da educação para com a exclusão, deste processo, dos
diferentes —, o que não implica em mudança substancial das práticas sócio-educativas.
No entanto, esta combinação foi incorporada no discurso de alguns professores quando da
proposição deste trabalho, uma vez que indagavam rapidamente quando iríamos discutir a
perspectiva histórico-cultural, pois não queriam mais ser construtivistas (coisa que parece
nunca terem sido).
Um exemplo interessante desse processo de incorporação é proporcionado por algumas
atividades encaminhadas em salas de recursos, onde o que as determina como históricoculturais
é somente o fato dos sujeitos estarem dispostos em grupo:
Objetivo: Levar a criança a utilizar sua criatividade e desenvolver a seqüência lógica da
estória (começo, meio e fim), além de estar desenvolvendo sua memória auditiva / Modelo
Ficha para Composição; Objetivo: Levar o aluno a utilizar sua imaginação, através de sua
realidade, por onde andam, o que fazem / Através do relato dos alunos, o professor trabalhará
o contexto sócio-cultural de cada um.
Esta tentativa de trazer para sala de aula questões sócio-culturais seria bastante interessante
se o objetivo central não repousasse sobre a aprendizagem individual, fora do contexto
social e institucional em que, por exemplo, o aluno chegou através da sua “imaginação”.
Ao introduzir o social nestas atividades, priorizando a oralidade e a escrita como produto,
desligadas das condições históricas e das bases sociais de seu aparecimento, está se
reeditando como mecanismo de controle da ação pedagógica: o produto do conhecimento.
Esses dois exemplos ilustram algumas das fontes de complexidade do trabalho escolar, pois
na verdade, não podem ser entendidas como atividades “histórico-culturais” todos os tipos
que incluam ou façam uma referência à vida social, que não gerem inquietações, novas
exigências ou ajustamentos de ação, uma vez que são diversos os modos de elaboração do
aluno.
Não nos parece fácil ser um idealizador de atividades desta ordem se ao mesmo tempo não
entendermos que elas não aderem a uma idéia já constituída, a um conceito pronto.
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Também a idéia não é algo que serve simplesmente para dar conteúdo, preencher uma
atividade.
A visão do processo de elaboração de atividades, na perspectiva de uma constituição
histórico-cultural, pressupõe que esteja envolvido um trabalho de linguagem e pensamento,
de transformação de significados e sentidos, de relações com objetos mediados pela
palavra.
A linguagem que acompanha a realização de atividades como esta (se propostas para o
conjunto) seria o principal veículo para o desenvolvimento da intersubjetividade, a
interiorização de conceitos, o desenvolvimento do significado do discurso e o
desenvolvimento dos processos cognitivos superiores.
O ensino consistiria em dar assistência ao desempenho pela zona de desenvolvimento
proximal, isto é, o ensino estaria ocorrendo naquele ponto da zona onde o desempenho
pode ser obtido com assistência.
O estudo dos processos de construção de conhecimento no contexto institucional de
educação formal deve privilegiar os processos discursivos. Vygotsky considerava o
significado das palavras a unidade básica para a análise da consciência, porque o
significado das palavras é um fenômeno tanto intramental quanto intermental.
A palavra faz referência a competências no uso do vocabulário e do discurso, que se
desenvolvem no contexto do seu uso social pela atividade conjunto. Os significados sociais
das palavras são interiorizados pelos indivíduos no discurso autodirigido, sendo, então,
mantidos escondidos até se desnudarem e serem trazidos à luz pelo pensamento.
Quando as crianças aprendem a ler ocorre uma grande alteração na sua forma geral de
pensar, assim como nas relações entre pensamento e linguagem. Os modos de ação do
sujeito, portanto, não se classificam simplesmente segundo dicotomias tais como:
permitindo repensar a tarefa pedagógica. É fundamental rever dicotomias que dissimulam a
complexidade do trabalho de elaboração conceitual, um trabalho mediado pela palavra e
realizado pelo sujeito com a indispensável participação do professor.
No limite, significa dizer que as atividades de ensino acabam por se reproduzirem, não
importando em que teorias de alfabetização dizem estar repousando. As indiferenças
observadas no interior delas acabam sendo reforçadoras dos estigmas e exclusões dos
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deficientes mentais do processo de escolarização, ao invés de se transformarem num
profundo marco de referência para a investigação de como estes sujeitos aprendem.
Algumas conclusões ainda em movimento
Neste breve, mas inquietante, panorama local da realidade das modalidades de ensino
especial foi possível perceber, mesmo que superficialmente, os vários entraves que
impedem a consolidação da qualidade da escolarização do deficiente mental. Como bem
ilustrou Santomé (1997, p. 176), as instituições escolares precisam ser lugares onde se
aprenda, mediante a prática cotidiana, a analisar como e por que as discriminações
surgem, que significado devem ter as diferenças coletivas e, é claro, individuais.
Portanto, pensar alternativas que aproximem os processos de ensino da aprendizagem
destes sujeitos significa, de um lado, desconfiar das explicações totais e unicausais que têm
determinado as histórias de ensino dos sujeitos especiais e, por outro, pensar o próprio
significado do termo “ensino”, uma vez que precisamos tentar responder a pergunta: como
ensinar esse indivíduo? Como sugestão para este último, a incorporação da efetiva
contribuição de outras áreas da ciências, tais como a Sociologia, Antropologia e História,
merecem ser debatidas e analisadas.
Talvez, ainda, dever-se-ia garantir uma interlocução da educação especial com as
discussões mais amplas que a educação vem realizando, desencadeadas com a exigência de
novas demandas e novos atores sociais que acabaram subvertendo a dinâmica das salas de
aula e que vem contribuindo para o debate curricular.
Assim sendo, as contradições da prática pedagógica, aqui apresentadas, sinalizam para a
necessidade de redescoberta da qualidade da escolarização especial que se expressa e se
representa na construção de práticas pedagógicas comprometidas com a mudança das
condições sociais e educativas que limitam as oportunidades dos sujeitos deficientes.
Ao ressaltar os aspectos teorizáveis das práticas pedagógicas propus uma ação de inversão,
uma vez que estas questões sempre ficam relegadas a segundo plano, dando lugar às
interpretações e orientações da deficiência como limitadora da aprendizagem.
Entretanto, examinando a trajetória das argumentações, o que parece não ser claro para os
professores é que, sua prática não pode ser introduzida em uma teoria, o processo deve ser
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de construção de conceitos, práticas, relação entre sujeito-objetos de conhecimento que
expressem formas de apreensão da deficiência e do ensino.
Portanto, questiono se somente a deficiência pode ser responsável pela limitação da
aprendizagem desses sujeitos. Para Skrtic, a educação especial reproduziu os mesmos
problemas que intencionava solucionar porque.
sua argumentação contra o modelo de aula especial se baseou em uma crítica prática, em
lugar de uma crítica teórica. Isto é, se baseou em uma crítica das práticas tradicionais, em
lugar de uma crítica dessas mesmas práticas e das suposições sobre as quais se fundamentam
(1996, p. 65).
No limiar desse questionamento, estamos rejeitando os argumentos de uma crítica prática
para construção de uma crítica teórica, não com a utilização dos argumentos históricos da
psicologia, e, sim, tomando de auxílio às relações entre educação/escolarização, que são de
uma outra ordem, conhecimento e cultura.
A partir disso, abre-se um imenso leque de possibilidades investigativas para as práticas
escolares, onde podemos redesenhar os mecanismos — que atuam nas salas de aulas, nas
relações sociais mais amplas, no entendimento das deficiências, na aprendizagem, etc. —
graças aos quais pode se passar de deficientes a sujeitos do conhecimento. Essa ótica
contribui, por exemplo, para que compreendamos de modos diferentes a escola como
"máquina de produção" e não propriamente de reprodução cultural e econômica. Isso
provoca desdobramentos notáveis para a teorização e as práticas de educação especial e,
decisivamente, para o currículo.
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2 comentários:

  1. Oi Carla tudo bem?
    Amei seu blog PARABÉNS!!!
    Sou Pedagoga, atualmente fazendo Pós em Neuropsicopedagogia.
    Estou fazendo a Monografia e se possível gostaria de lhe convidar para me ajudar nesse processo.
    Por favor lhe peço que responda um questionário, desde já agradeço!!!
    Meu Whatsapp: 11948714178

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